Quinta-feira, 23 de Novembro de 2006

Extinção

  

Durante uma pausa na sua viagem, justificada por diversas razões, Haghen deu por si numa enorme exposição, enquanto percorria as labirínticas ruas de Melnit. Era um daqueles eventos calendarizados onde supostamente convergiam as maravilhas tecnológicas vindas de todos os mundos que polvilhavam o universo conhecido. No fundo, cada pavilhão era uma gigantesca montra, onde as várias companhias se exibiam e alardeavam a sua superioridade tecnológica, no intuito de conquistar os consumidores locais, em especial os governos ou os cidadãos mais abastados. Haghen lamentou aquele azar do destino e esgueirou-se entre a multidão, tentando passar despercebido. No entanto, ao passar junto de um dos últimos pavilhões, um eridano agarrou-lhe o braço e deteve-o.

  - Suponho que lhe interesse ver um milagre da engenharia genética! - bradou de modo quase histérico o eridano , esboçando um sorriso na sua larga boca. - Venha, amigo! Visite o pavilhão da Sakamori Tecnologies ! Somos os maiores...

   - Não! Não tenho tempo! - retorquiu Haghen, sacudindo-o.

  Haghen compôs o seu capuz e fez-se novamente ao caminho. Porém, logo que deu alguns passos, reparou num grupo que vinha na sua direcção. Eram policias da Igreja Suprema e pareciam procurar alguém. Reagindo de imediato, Haghen voltou atrás e fez sinal ao eridano de que tinha mudado de ideias.

- Venha! Venha! - exclamava o animado ser, enquanto o conduzia por um corredor. - Garanto-lhe que nunca viu nada assim.

   Nesse instante, uma luz mais forte revelou o oculto rosto de Haghen .

-Ah! É humano! E não foi renascido! - bradou o animado eridano. - Uma visão rara nos tempos que correm! Como esta empresa também foi fundada na velha Terra, nem lhe vou cobrar entrada! O que tenho para lhe mostrar é fantástico! Um milagre da ciência! Graças ao Supremo Espírito da Igreja Suprema, claro...

   Haghen tirou o capuz e soltou um suspiro nasalado.

- Claro... Eu sou humano mas apenas nasci na Terra... Sou drakoniano. Fui...

   O vendedor nem o escutou, continuando a debitar elogios à empresa que representava. A certa altura, detiveram-se na entrada de uma enorme e escura sala. Aos poucos, as luzes e os painéis holográficos foram-se acendendo numa sequência pré-determinada. Começaram então a surgir velhas imagens de quando a Terra fervilhava de vida e o Homem a habitava sem restrições. Imagens de antes do Colapso... Nesse momento, um som estranho e profundo chamou a atenção de Haghen para o fundo da sala. O eridano sorriu novamente e fez-lhe sinal para se aproximar daquilo que parecia ser uma cela. Havia algo vivo no seu interior, um enorme animal que Haghen reconheceu de velhos livros que lera.

- É um felino da Terra... Um tigre... - murmurou.

   O outro bateu palmas de contente e depois abriu os seus compridos braços na direcção do tecto.

- Graças ao Supremo Espírito, a Sakamori encontrou algum ADN impoluto e conseguiu trazer de novo à vida esta primitiva besta da Terra! Não é maravilhoso! Apenas conseguimos clonar este exemplar, mas em breve, a partir deste, serão criados novos espécimes alterados, de acordo com a vontade dos clientes! Já imaginou as possibilidades? As leis da Igreja Suprema não incluem a clonagem ou ressuscitação de seres irracionais! Este é um animal feroz! Muitos militares irão pagar fortunas para terem versões alteradas deste animal nas suas fileiras e os ricos directores terão uma versão de estimação à qual retiraremos a ferocidade, usando inibidores idênticos aos usado nos "sem-alma"! As possibilidades são imensas!

  Haghen manteve os olhos no animal, que caminhava nervosamente, descrevendo círculos dentro da sua prisão e reparou que a empresa tinha gravado o seu logótipo no dorso do animal.

- O único problema é que este estúpido animal tem-se recusado a comer!... - resmungou em jeito de confissão. - O ingrato! Talvez tenhamos de encurtar esta digressão e levá-lo para o laboratório em Secmiat antes do que estava previsto... Ainda temos de o estudar melhor e ele é o único ADN que agora temos... Nós...

  Haghen não ouviu mais nada. O seu olhar cruzou-se com o do animal e ele viu-se reflectido naqueles enormes olhos, onde não restava qualquer sombra de grandeza ou vitalidade. Olhos ausentes, suplicantes... Reflexos solitários de um mundo que nada nem ninguém traria de volta. Reflexos de um olhar condenado...

 Virando-se energicamente, Haghen foi-se embora e abandonou o pavilhão, sem ligar aos apelos do eridano .

  Nessa noite, alguém iludiu os andróides e todos os outros sistemas de segurança e penetrou na zona dos pavilhões... Primeiro houve um silvo quase inaudível, depois um profundo suspiro final que ecoou por toda aquela zona. Passados apenas alguns minutos, o pavilhão da Sakamori era totalmente destruído por uma violenta explosão. Tudo no seu interior havia sido incinerado por uma granada de cascata...

  No dia seguinte, um homem seguia por uma longa avenida de Melnit. Uma mulher de traços asiáticos aproximou-se e colocou-se a seu lado. Com um gesto habitual e inconsciente, ela cobriu com o seu ilegalmente longo cabelo os números de série no seu pescoço que a identificavam como uma ressuscitada, uma "sem-alma" aos olhos das autoridades religiosas. 

 - Nas notícias dizem que houve um ataque terrorista ao pavilhão da Sakamori... Sabes alguma coisa sobre o que se passou? - perguntou-lhe ela.

 - Lin... Digamos que fiz um favor a um velho amigo... Por vezes, não existir, pode não ser assim tão mau... Especialmente se formos apenas uma memória de algo que já não existe. Espero que haja alguém que também tenha misericórdia de mim, quando esse momento chegar e eu for apenas isso... uma memória, uma curiosidade pronta a ser devassada. Estes são os últimos dias de um mundo moribundo...

 Em resposta ela agarrou-lhe a mão com firmeza e ficou momentâneamente em silêncio, enquanto iam caminhando lado a lado.  

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publicado por sá morais às 18:56
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De Outsider a 24 de Novembro de 2006 às 00:11
Sá, não foste tu que escreveste isto, pois não? É que eu tenho a certeza que já li isto, só não me lembro onde... É de facto um bom conto.
Um Abraço.


De sá morais a 24 de Novembro de 2006 às 11:10
Fui, fui! Epá, vê lá isso para não me acusarem de plágio!
:)


De Outsider a 24 de Novembro de 2006 às 14:51
Desculpa lá, Sá. Tenho a certeza que já li isto. Deve ter sido no Avatar ou então no Voz de Celénia...
Um Abraço.


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